Ao longo de cinco décadas, a família gaúcha Quartiero construiu, a partir da cidade de Itaqui, a 635 quilômetros de Porto Alegre, um império do arroz com feijão. Sua empresa, a Camil, tem 23 fábricas no Brasil, na Argentina, no Chile, no Peru e no Uruguai. Ela processa 2 milhões de toneladas de arroz por ano — o suficiente para cada brasileiro comer 10 quilos.
Em 2013, a Camil faturou 3,6 bilhões de reais. A investida da família começou quando Jairo Quartiero abandonou, na década de 60, o seminário para ajudar o pai, Mabelino, a pagar as contas da casa após um incêndio que devastou o pequeno engenho da família. Jairo passou a transportar arroz de uma cooperativa no Sul para São Paulo.
Acabou dono da cooperativa, que nos anos 80 se transformaria na Camil. Em 2007, a família decidiu que não bastava ser a maior processadora de arroz do país. De lá para cá, começou a pôr em prática um plano ainda mais ousado — fazer da Camil uma gigante do setor de alimentos.
Por um lado, a empreitada deu muito certo. Somente nos últimos três anos, a empresa quase triplicou de tamanho. Mas, por outro, acabou dando origem a uma série de desafios que, paradoxalmente, podem acabar tirando a empresa das mãos da família que a criou.
Em meados de setembro, a Camil contratou o banco de investimento BTG Pactual para procurar um comprador para a companhia. O que explica essa decisão? Em resumo, a Camil paga o preço de ter crescido demais em pouco tempo. Desde 2007, a companhia comprou 13 empresas na América Latina.
Passou a investir também em novos negócios. Em 2011, adquiriu a processadora de pescados catarinense Fempe, dona das marcas Pescador e Alcyon, e a Coqueiro, que pertencia à americana Pepsico.
No ano seguinte, pagou 345 milhões de reais pelas marcas de açúcar União e Da Barra, do grupo Cosan. Em agosto de 2013, ampliou sua presença no exterior com a aquisição da produtora de arroz argentina Loma Alimentos.
O capítulo mais recente dessa onda de aquisições ocorreu em setembro, quando assinou um contrato para comprar a companhia peruana de alimentos Romero Trading por cerca de 70 milhões de reais. Para financiar toda essa expansão, no fim de 2011 a família vendeu 31,7% das ações para a gestora Gávea, hoje controlada pelo banco americano JP Morgan.
O plano dos sócios era ganhar corpo para abrir o capital na bolsa. Assim, o Gávea venderia suas ações, e uma Camil anabolizada seguiria na mão dos Quartiero. O problema é que a tentativa de abertura do capital deu errado. O custo das dívidas assumidas pela empresa foi crescendo e passou a prejudicar o desempenho operacional.
A decisão de vender o negócio foi um consenso entre os acionistas da companhia. Pelo projeto inicial, o Gávea teria de ficar pelo menos três anos no negócio — período que terminou em outubro. Como o mercado continua difícil para aberturas de capital, o plano de ir à bolsa foi abortado.
Diante das dificuldades, o Gávea avisou à família que iria à caça de um comprador para suas ações. A decisão deixou os Quartiero em uma situação delicada. Valia a pena ficar no negócio ou era melhor aproveitar a deixa e também vender sua parte? Pesou na decisão de vender o fato de os executivos do Gávea argumentarem que, com os dois acionistas vendendo 100% do negócio, a empresa poderia valer mais.
Os Quartiero acabaram concordando em também tentar vender sua fatia. Os sócios esperam receber cerca de 5 bilhões de reais por 100% da companhia. Procurados, a Camil e o Gávea não comentaram.
O projeto dos Quartiero de diversificar a operação da Camil fazia todo o sentido no papel. O mercado de arroz e feijão está em queda gradativa no Brasil. Com o aumento da renda nas últimas décadas, os brasileiros estão trocando o arroz com feijão por carnes, massas, sanduíches. Em 1980, cada brasileiro comia 48 quilos de arroz por ano. Em 2014, a média caiu para 38 quilos.
O consumo de feijão diminuiu 15% nesse período. “É um mercado que não deve crescer e que vai continuar com margens apertadas”, diz Carlos Cogo, consultor especialista no mercado de arroz.
Para continuar a crescer, a Camil deveria comprar concorrentes menores ou investir em novos setores. A lógica dos últimos investimentos foi passar a operar com produtos que chegam aos supermercados no mesmo caminhão que já leva arroz e feijão.
Mas, com tantas aquisições, a Camil acabou se desarrumando. Recentemente, contratou a consultoria Integration para rever sua estratégia comercial. Executivos reclamam que, de um ano para o outro, tiveram de vender ao mesmo tempo arroz, pescado e açúcar. “Não há um planejamento de vendas nem precificação dos alimentos”, diz um executivo da empresa.
A maior deficiência da Camil é sua área de pescados. A Coqueiro, comprada em 2011, veio sem equipe comercial, que ficou toda com a antiga dona, a Pepsico. Tradicional líder na venda de sardinhas, a empresa perdeu o posto para a Gomes da Costa — hoje, a Coqueiro tem 31,7% do mercado total de pescados.
Enquanto tenta entender o novo mercado, a Camil atrasou inovações que já estavam planejadas. As latas da Coqueiro não têm a tecnologia “abre fácil”, aquela que dispensa abridor. A ideia era resolver o problema em um ano, mas até agora nada. “Eles acharam que seria mais fácil vender peixe. Mas quem gostou do negócio, por enquanto, foram os concorrentes”, diz um executivo rival.
Para piorar, as aquisições estão pesando no balanço. A dívida aumentou de 340 milhões de reais no ano fiscal que terminou em 2011 para 1 bilhão de reais no último ano fiscal, que encerrou em 2014. As despesas financeiras aumentaram 49% no último balanço anual — e chegaram a 185 milhões de reais.
O lucro caiu 9% e equivale, hoje, a dois terços das despesas com pagamento de dívidas. Diante disso, a Camil está perto do teto de endividamento, estipulado pelos acionistas em três vezes a geração de caixa — está em 2,7.
Para executivos que acompanham de perto o setor, não vai ser fácil encontrar interessados em pagar 5 bilhões de reais pela Camil. Os candidatos naturais são os fundos soberanos e gigantes do setor de commodities agrícolas, como ADM, Bunge, Cargill e Noble.
Mas, segundo EXAME apurou, entre essas empresas existe certa desconfiança em torno do futuro do mercado de arroz, que não é tão rentável quanto outros produtos, como soja e milho. Alguns grupos estão interessados na divisão de açúcar, outros na divisão de pescados, mas os controladores não querem fatiar a empresa. O leilão do império brasileiro de arroz deve durar até o início de 2015.Thiago Bronzatto Thiago Bronzatto, de Revista EXAME Leia mais em exame 17/11/2014
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